O cinema nasceu como documentário. Foi criado para observar e analisar a realidade. Embora o cinema de ficção tenha se tornado uma indústria colossal e tenha influenciado de maneira definitiva o sistema de produção do cinema documental, acredito estarmos atravessando um momento de grande oportunidade para a produção de documentários.
A união de fatores como a tecnologia de produção de equipamentos, que permite captar áudio e imagem de qualidade profissional por um preço muito baixo; a internet de banda larga acessível a um número cada vez maior de pessoas; e o fenômeno mercadológico da Cauda Longa, que permitem localizar e engajar pessoas com afinidade por determinados assuntos, constituindo poderosos mercados de nicho, faz com que ganhemos uma nova possibilidade de ascensão do gênero documental na vida das pessoas.
Isso sem contar a grande abertura de mercado possibilitada pelas políticas públicas, com a criação da Ancine, o condecine (imposto que taxa a indústria audiovisual e reverte o investimento para a produção local) e a regulação das cotas de tela, que abrem espaço para a inserção de conteúdos nacionais na TV por assinatura.
Ainda assim, vivemos uma situação de potencial de produção altamente reprimido. Poderíamos produzir documentários com muito mais eficiência, rapidez e eficácia, com mais independência e autonomia, a partir das condições atuais colocadas pelo próprio mercado.
Os editais públicos são irregulares, inconstantes e inconsistentes em termos de critérios de seleção, abrangência e por serem governamentais e não públicos, não sempre favorecem a liberdade de expressão. O financiamento a documentários costuma financiar uma quantidade muito pequena de filmes, o que transforma o processo numa espécie de loteria. Os recursos demoram muito a sair e via de regra são insuficientes, pois geralmente o documentarista é obrigado a gastar uma parte muito importante dos recursos em constituir uma estrutura administrativa, advogados e prestação de contas. Para finalizar, os editais são geralmente moldados para satisfazer a estrutura da indústria existente (grandes produtoras, festivais, distribuidoras), que são movimentos que dependem diretamente do financiamento público para se manter, esquecendo assim a criação de novos mercados e colocando travas à inovação.
Para nós, documentaristas, fazermos parte desse sistema que depende de recursos públicos não faz muito sentido, já que o recurso que sobra para fazer o documentário é ínfimo. Os nossos filmes não são assistidos por ninguém e ainda ficamos com o produto amarrado por uma série de exigências governamentais e desse falso mercado, o que não nos facilita a difusão e a monetização do produto.
O mercado de TV por assinatura seria uma alternativa viável. Mas estamos lidando mais uma vez com um falso mercado, pois é igualmente financiado pelo Governo e isso nos obriga mais uma vez a investir na burocracia Estatal. Digo investir pois custa dinheiro e energia que poderiam estar sendo direcionadas para coisas mais efetivas, como fazer filmes, por exemplo. Somos ainda obrigados a investir fortunas para fazer parte de associações que fazem o lobby estatal, eventos que promovem o encontro com compradores de conteúdo, todos interessados em projetos que se encaixem à sua ideia de público e de linguagem. Mas ninguém está perdendo mais público que esse player, que dita o investimento público.
Temos ainda a alternativa do branded content. Marcas contratam documentaristas para fazer conteúdos com o clima, o ambiente, a cor, a energia da marca. Os orçamentos são de documentário, utilizam elementos da vida real de personagens, a linguagem se aproxima muito do que chamados de documentário, mas nem sempre passa de publicidade disfarçada. Mas isso também continua sendo uma alternativa, como as outras duas, para quem deseja viver de fazer documentários.
Ainda dentro dessa alternativa, existem Leis de Incentivo, federais, estaduais, municipais, que nos colocam de volta no colo do executivo de empresa, que tem demandas e necessidades empresariais, que dificilmente coincidirão com as de quem realiza documentários. Some-se a essa última, tudo aquilo que já falamos sobre custo e energia com a burocracia Estatal. Os novos mercados digitais, do YouTube ao chamado OTT (Netflix, iTunes, HBOGo, GlobosatPlay, Amazon Prime etc) tendem a reproduzir a lógica dos mercados de TV e cinema, pois atuam como distribuidores, que selecionam e licenciam conteúdos. Mas já oferecem uma capacidade maior de distribuição direto para os públicos de interesse e devemos ficar atentos a essas possibilidades.
Mas o mundo ainda não acabou para quem deseja viver de fazer documentários com autonomia, liberdade e responsabilidade.
Não escrevemos este arquivo para ficar reclamando do Governo, do trade publicitário, do mundo corporativo. Não vai resolver nossos problemas. Entre as mil oportunidades que o mercado atual oferece e a sua caricatura (que é o que acabamos de fazer), existem milhares de brechas e diferentes tonalidades. A indústria, o governo, as corporações são feitas de pessoas, muitas, sensíveis às questões sociais, aos direitos humanos, à situação política do Brasil e do mundo atual. Como em qualquer setor, alguns são máquinas reprodutoras desses sistemas, outros são inovadores, buscam algo diferente.
A questão é que precisamos nos mexer também, criar novos paradigmas de atuação no mercado. Buscar exemplos em outras realidades, para nos inspirar a criar algo novo. É possível, dentro do quadro atual, criar um novo mercado para o documentário, disruptivo, baseado em novos parâmetros de efetividade.