No final do século XIX, a recém-criada indústria cinematográfica já se configurava como um oligopólio comandado pela chamada Edison Trust, que dominava as patentes de câmeras, projetores e detinha contrato de exclusividade com a Kodak, para utilização da película.
Para fugir do domínio e controle de Thomas Edison, produtores independentes como Carl Laemmle (Universal), William Fox (Twentieth Century Fox) e Adolfph Zukor (Paramount) cruzaram os Estados Unidos rumo à Califórnia, instalando-se num pequeno distrito de Los Angeles, hoje mundialmente conhecido como Hollywood.
O pedágio exigido pelos detentores da propriedade intelectual reduzia a liberdade de criação e as possibilidades de ganho daqueles que empreendiam um novo negócio, que ajudou a transformar a América no celeiro da criatividade e do entretenimento no início do século XX.
Compreender esse momento histórico da formação da indústria faz-se necessário, pois vivemos hoje uma situação similar. Uma nova indústria cultural (digital) baseada no fluxo da informação gerada pelos usuários, se contrapõe ao modelo proprietário tradicional (analógico).
Em Empire of Their Own, Neal Gabler aponta como judeus do leste europeu se unem para inventar o american way of life, de moral protestante e peculiar senso de superioridade. Empreendedores como os irmãos Warner, Louis B. Mayer e Walt Disney já faziam parte desse grupo.
O novo padrão comportamental dos povos oriundos da recém-constituída revolução industrial exigia lazer, distração, entretenimento. Algo que desviasse o trabalhador de sua condição de máquina. Que o fizesse sonhar, se descolar da dura realidade, como a personagem de A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen. Deslocada de sua vida cotidiana, marcada por violência doméstica e sua recém adquirida condição de desempregada, ela embarca em repetidas sessões de cinema, que a fazem embarcar em delírio esquizofrênico.
O negócio de Hollywood era simples. Baseava no aluguel de uma poltrona, dentro de uma sala escura, por algumas horas. Ali dentro, seu cérebro seria capturado pelo olhar fixo a uma tela gigante de ecrã. Os trabalhadores sucumbiam a uma hiper-realidade simulada, um feixe de luz nas trevas da cotidianidade.
Aos poucos o cidadão médio norte-americano tornava-se dependente daquele momento entorpecedor de lazer. Os nickelodeons conquistaram a América e traziam consigo um novo, e não menos rentável, negócio: o estúdio.
Enquanto as patentes de Edison foram perdendo efeito, o negócio do cinema se transformava e ganhava vulto dentro dos Estados Unidos, transformando-se em seguida, em ponta de lança para ocupação do espaço simbólico internacional, ainda no entre-guerras.
Com uma logística complexa, os estúdios fabricavam sonhos em linha de produção. Artistas assalariados gravavam até três filmes em uma única semana. Esses filmes eram logo transportados para todo o país, e depois para o mundo, em forma de rodízio. Nos anos 30, as salas de cinema já exibiam uma nova atração a cada semana. Cartazes antecipavam a atração da semana seguinte. Atores e atrizes tornavam-se estrelas.
Desejo, sensualidade, volúpia. Um mercado em ebulição forçou a prática da concorrência entre os pioneiros da sétima arte, obrigando-os a apelar para o ousado em busca de audiência. Protestantes exigiam uma nova moral para a grande tela e o governo ameaçou intervir.
A Motion Pictures Association of America surge em 1925 para exercer, entre os estúdios, uma espécie de autorregulação moral, publicada em forma do chamado “código Hayes”, com regras explícitas e pormenorizadas de como o comportamento sexual, o respeito à família e às instituições deveriam ser retratados nos milhares de ecrãs espalhados de leste a oeste do país.
Os códigos morais que forjaram a América, seu projeto nacionalista e imperialista formam-se de maneira inequívoca a partir da união da indústria cinematográfica, e desta com o Estado. Os efeitos de uma nova política de construção simbólica foram determinantes no âmbito interno dos Estados Unidos.
O Nascimento de uma nação, de D.W.Griffith, de 1915, é um épico sobre a formação do Estado norte-americano. Entre outras questões, o filme difunde o racismo de maneira plausível e explícita e está entre as primeiras colaborações da assessoria técnica do Pentágono com Hollywood.
Os Estados Unidos passaram a utilizar o cinema como meio de difusão de valores, conquista de mercado para suas indústrias e consolidação de uma supremacia cultural baseada no consumo. Firma-se no imaginário universal como nação mais forte, a partir de sua força bélica e da exaustiva autorreferência como solução para os grandes problemas da humanidade.
Em 1927 o Departamento de Defesa já contava com um escritório específico para tratar de produções hollywoodianas, e contribui com Wings, de William Wellman. “É nosso interesse participar da produção de filmes”, assume Philip Strub, assessor especial de mídia e entretenimento do Pentágono. Nessa época, o cinema de Hollywood já ocupava 95% do tempo de projeção na Inglaterra, 70% na França e 68% na Itália.
Um dispositivo do Sherman AntiTrust Act, de 1890, garantia a legalidade de cartéis norte-americanos formados além-mar. Para dar vazão ao espírito nacionalista da indústria, a palavra “Export” foi acrescentada na MPA, tornando-se, a partir de 1946, em Motion Pictures Export Association of America (MPEAA).
Comumente apelidada de “Pequeno Departamento de Estado” ou “Ministério do Exterior”, a MPEAA seguia conquistando mercados, assinando acordos e aplicando leis favoráveis à indústria, atuando como representante oficial do Estado norte-americano em outros países. Segundo Eric Johnston, o primeiro presidente da organização:
Nossos filmes representam cerca de 60% do tempo de projeção nos países estrangeiros. Se um desses países tentam nos impor restrições, procuro o Ministro da Fazenda e lhe mostro, sem ameaças, que simplesmente nossos filmes mantêm abertas mais da metade das salas. Isso proporciona empregos e, portanto, constitui um apoio considerável para a economia do país, qualquer que ele seja. Lembro também ao Ministro da Fazenda os impostos que estas salas representam. Caso o ministro não queira entender esses argumentos, ainda posso utilizar outros meios adequados. (HENNEBELLE, Guy – 1978)
Enquanto Walt Disney modificava de maneira definitiva o modelo de negócios dos grandes estúdios, a partir do licenciamento da imagem de Mickey Mouse para uma indústria de relógios, víamos a América curvar-se à televisão. A partir desse momento, cada conteúdo produzido passou a ser tratado pela própria indústria como uma franquia, a ser difundido e utilizado nos mais variados suportes: bonecos, roupas, brinquedos, acessórios. A propriedade intelectual deixou de ser o grande vilão dos estúdios para se tornar em principal aliado.
Edward Jay Epstein, em “O Grande filme”, nos conta como o a televisão passou de ameaça a grande aliada do poder concentrador dos grandes estúdios. Para ser major já não bastava ter o estúdio, as salas de exibição e o sistema de distribuição. Era preciso também ter uma grande cadeia de televisão, emissoras de rádio, jornais e revistas, além de um braço na indústria fonográfica. As franquias ganhavam força em múltiplas plataformas. Um conteúdo poderia ser vendido em salas de cinema, home-video, TV aberta, por assinatura, CDs, videogames. Tudo o que ameaçava a indústria, num primeiro momento, acabou por se transformar, logo adiante, em forte aliado. Ou simplesmente era incorporado, ampliando os tentáculos dos conglomerados.
O controle e o poder do oligopólio representado pela Motion Pictures Association passou a abarcar todo o território midiático mundial. Eram tempos de Plano Marshall, da crença no Estado mínimo, supremacia do mercado sobre os Estados nacionais, do culto à Primeira Emenda.
Legislações locais dos países sob influência desse oligopólio, a exemplo da França e Espanha e do próprio EUA, estão em pleno processo de recrudescimento da regulação interna em relação à propriedade intelectual em favor da indústria dominante. O mesmo ocorre no Brasil e vários outros países em todos os continentes. A resistência de grupos sociais, ONGs e partidos políticos tentam conter seu onipresente lobby.
No campo político, o desenfreado processo de globalização dita uma nova ordem social. A condição supranacional da indústria cultural atual amplia sua presença a outras esferas da sociedade, dialogando com os interesses do grande capital, sobretudo da indústria financeira em crise.
A convergência das mídias altera de maneira significativa a maneira como o cidadão comum lida com os conteúdos culturais. Clay Shirky, acrescenta, em seu livro “Cognitive Surplus”, sobre uma mudança de padrão de consumo cultural, criando uma nova cultura da participação. A atitude passiva diante do sofá em frente ao aparelho de TV seria abandonada.
De simples espectadores fomos alçados à condição de mídia. Gilles Lipovetsky, descreve em “A cultura-mundo” a alteração do paradigma do mass-media para o self-media. Novos players contrapõem de maneira significativa o poder da indústria cultural tradicional, inventando novas maneiras de produzir, distribuir e fruir conteúdos, ideias e criações. No documentário Ctrl-V, Lipovetsky fala de dois ambientes paralelos. Um da democratização do acesso e produção de conteúdos e outro, do mercado, cada vez mais dominado por Hollywood, e que ocupará cada vez mais as redes e teles onipresentes na sociedade contemporânea. O autor fala em uma ecanocracia, ou uma democracia do ecrã.
Assim como o oligopólio da Edison Trust sucumbiu ao novo poder do Hollywood, alterando definitivamente a feição da indústria cultural, do modelo industrial para o criativo, estamos diante de um novo processo que poderá desencadear numa mudança radical da lógica e da estrutura da indústria cultural global.
Esse fenômeno veio acompanhado de uma discussão que ganhou bastante relevância no âmbito da Unesco, organização das Nações Unidas para educação, ciências e cultura, que promulgou recentemente uma Convenção internacional sobre a Diversidade Cultural. Sob o poder de fogo dos EUA, foi aprovada por 148 votos a favor, contra apenas 2 votos (EUA e Israel). O documento apresenta mecanismos locais e internacionais para conter o preocupante domínio do espaço simbólico global, controlado pelas majors.
Infelizmente, não teve muito efeito e aplicabilidade fora da Unesco, sobretudo na Organização Mundial do Comércio, onde teria condições de estabelecer um maior equilíbrio no comércio mundial de bens de valor simbólico.
Entre os aliados desse movimento de resistência estão as empresas de Internet, como Google e Facebook, que muito se assemelham pelo espírito de aventura e frescor das ideias aos primeiros empreendedores do cinema hollywoodiano. Pela tangente, correm as empresas de telefonia, que ofertam a infraestrutura necessária para o surgimento dessa nova indústria cultural: digital, participativa e não-proprietária, apenas no sentido dos direitos autorais dos produtores de conteúdos, pois seus sistemas são muito bem protegidos.
Os movimentos de cidadania cultural organizados em torno do livre acesso ao conhecimento e da cultura participativa contrapõem de forma incisiva o poder das majors e buscam a flexibilização do copyright. Em tese, essas demandas por democracia cultural ampliariam as formas de produção e participação dos ambientes simbólicos locais, influenciando na promoção da diversidade cultural em âmbito global.
O contraponto desse movimento, que parece crescer e se consolidar, é a ampliação dos tentáculos das majors ao espaço cibernético, arquitetando novas estratégicas e produções em formatos transmídia e multiplataforma, ocupando cada uma das telas e redes presentes em nosso convívio diário e ampliando ainda mais o domínio de 86% do mercado audiovisual global com audiência (convertida em receita publicitária) ou bônus de propriedade intelectual.
Epstein, Gabler, Shirky e Lipovetsky são alguns dos personagens presentes no documentário Ctrl-V, lançado em 2011 simultaneamente em todas as mídias: CineSESC, em São Paulo, TV Cultura e YouTube.